É noite, dou as costas para as chamas, o fogo leva à eternidade uma história que não me pertence, e vou-me embora.
Todo seu trabalho era reconhecido, mas naquela época, nos idos de um mil novecentos e vinte, as coisas eram diferentes. Não demorou, e aquilo se tornou um escândalo.
José Francisco, filho da politica do café com leite, mãe mineira e pai paulista, família simples, é um grande e talentoso artista plástico, está prestes a participar da semana de arte moderna. Este homem casado, pai de um menino de dois anos, e de uma menina de seis anos, boêmio por natureza, forçou demais aquele jovem coração de quarenta e dois anos de idade, e enfartou no próprio atelier, no meio dos seus quadros, uma semana antes da exposição.
A própria esposa o encontrou, tarde da noite, o corpo derramado junto com o vinho e o ópio. Ela velou o marido pela madrugada, contemplou seu trabalho, os onze anos de inspiração estavam ali, em dezenas de oil on canvas, prestes a serem apreciados e ganharem o mundo.
Ela encontra a porta de um reduto, bloqueada por telas e cavaletes, ela os remove, tenta abrir a porta, mas está trancada. Ela procura e encontra facilmente as chaves, espia o cadáver por um instante, abre a porta, acende as luzes, e encontra uma coleção que ela mesma, em treze anos de casamento, não conhecia. Era um quarto confortável, com uma vitrola a corda Columbia, tinha as paredes cobertas com treze telas, que retratavam lindas mulheres, e três belos rapazes negros. Algumas das mulheres retratadas eram bem familiares, outras tantas que ela não dava fé, também não reconhecia aqueles rapazes.
Ela deixou o reduto, caminhou até a saída do atelier, passou pelo cadáver, parou ao pé da porta, voltou até ele, e lhe cuspiu direto na cara.
O corpo foi removido logo nas primeiras horas da manhã, e, antes que os amigos e organizadores da exposição pudessem retirar as telas, ela voltou ao atelier, e ateou fogo em absolutamente tudo.
Eu não sabia direito quem ele era, e não sabia do talento de meu pai, pois na época eu era apenas um bebe, e minha irmã era criança. Antes de morrer, minha mãe deixou uma carta junto com a chave de um cofre, onde estava guardado o único quadro que restou dos trabalhos de José Francisco, era um retrato de minha mãe, perpetuando toda a beleza de sua juventude. Também havia alguns recortes de uns poucos periódicos daquela época. Estava nascendo um tipo de imprensa feminina, preocupada com a emancipação das mulheres, que vinham se organizando e reivindicando maior participação da sociedade, e a história ficou conhecida como A SALA DAS PAIXÕES, e os segredos de um homem eram escancarados, e achincalhados nesses periódicos. A semana de arte seguiu com grande sucesso, e registrou muitos nomes talentosos para a história, menos o nome de José Francisco.
Na carta, minha mãe pedia perdão porque, depois que meu pai morreu, ela havia assassinado o artista, e os anos fizeram pesar a dúvida em sua consciência, pois ela nunca soube se meu pai havia realmente dormido com aquelas mulheres e com aqueles rapazes, mas que nos últimos anos de sua vida ela tinha uma certeza intima de que, aquelas mulheres e aqueles homens, eram apenas suas paixões platônicas. Assim, ela só tinha um desejo: que eu e minha irmã queimássemos também o último quadro, porque ela preferia morrer com o artista a ser eternizada.
Em memoria de Maria Clara, José Francisco e Maria do Carmo, minha irmã e meus pais.
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